![]() A palavra trauma remete-nos para a ideia de lesão ou dano provocado por uma força bruta e desproporcionada. Associamo-la frequentemente a cenário extremos, tais como o rapto, tortura, guerra ou a qualquer outro fenómeno com potencial para quebrar o corpo e mente de quem tem a infelicidade de passar por eles. Apesar desta concepção centrar-se nesta experiência de ameaça à integridade física ou psicológica, tem vindo a ser compreendida duma forma mais abrangente, passando a incluir não só outras formas de violência menos óbvias e extremas, mas também situações repetidas de rejeição, humilhação ou negligência grosseira. Estes episódios de vida, quando ocorridos nas relações mais próximas e íntimas (por exemplo, na família) tornam o trauma mais complexo, na medida em que as pessoas de quem se espera segurança e afecto (por exemplo, os pais), são as mesmas que negligenciam, humilham ou agridem. Uma das consequências da exposição prolongada e repetida a situações deste género é o estilhaçamento daquilo que temos como verdade sobre nós próprios e os outros. Isto é particularmente verdade quando esta exposição ocorre numa fase chave e delicada do desenvolvimento, a infância. Nesta etapa, frequentemente o trauma introduz um acontecimento de vida que é incoerente ou até mesmo incompatível com um conjunto de "sentimentos" essenciais para o nosso bem-estar. Estes "sentimentos", que incluem as noções de que o mundo é justo, as pessoas são de confiança e de que o próprio tem valor e está seguro, são postos em causa e perdem o seu sentido, deixando a criança a sentir-se confusa, perplexa e perturbada. Por vezes, estes acontecimentos de vida, quando não são devidamente arrumados e resolvidos, perduram e vivem connosco, sob a forma duma sensação perdurante e profunda de solidão, insegurança, desadequação ou inferioridade. Contudo, apesar destes "assuntos inacabados" tenderem a perdurar ao longo da vida, isso não significa que não possam ser resolvidos e apaziguados. Todos nós conhecemos pessoas que passaram por experiências de vida deste género (por vezes com um carácter extremamente violento) e que, não só sobreviveram-nos, mas conseguiram fazer as pazes com o seu passado e florescer. Como conseguiram-no? Alguns fizeram um trabalho longo e árduo de reflexão pessoal que permitiu arrumar essas memórias numa forma libertadora. Outros encontraram pessoas ao longo da vida que lhes permitiram ter relações harmoniosas e, até certo ponto, reparadoras do passado. Contudo, nem todos conseguem fazê-lo sozinhos ou têm a sorte de encontrar as pessoas certas para que esta mudança possa ocorrer. Para essas pessoas, a Psicoterapia permite desbloquear ou acelerar a resolução destes traumas ou feridas emocionais. Uma das formas que tem para fazê-lo é a mudança do entendimento que temos dessas memórias através do recontar dos acontecimentos de vida traumáticos. Ou seja, o falar sobre as experiências passadas, particularmente as mais dolorosas, permite transformá-las. Quando essa transformação ocorre, as sensações de inferioridade, desadequação ou solidão atenuam-se e, no seu lugar, surgem sentimentos de tranquilidade, paz ou contentamento. Mas não são só os sentimentos em relação ao próprio que mudam. O entendimento que temos das pessoas que, no nosso passado, expuseram-nos a situações traumáticas também pode ser alterado. Nesse sentido, existe alguma investigação em Psicoterapia que revela alguns dos principais caminhos percorridos nesta mudança. O primeiro caminho passa pelo perdão do outro, o qual, quando genuíno e sentido, permite abdicar ou "deixar ir" emoções perturbadoras (por exemplo, o ressentimento ou a vergonha incapacitante) e necessidades negligenciadas no passado, tais como o afecto e segurança. Quando existe perdão, há uma mudança de perspectiva pela pessoa responsável pelo trauma, no sentido desta passar a ser vista com compaixão, havendo uma compreensão genuína dos seus motivos e intenções quando o trauma ocorreu. Contudo, nem todas as situações traumáticas são passíveis de serem transformadas pelo perdão (por exemplo, agressões violentas ou abusos sexuais). Nestas circunstâncias, torna-se difícil compreender as intenções e motivações do outro e não se vislumbra a possibilidade de compaixão e perdão do outro. Como tal, a mudança, quando ocorre, tende a realizar-se no sentido da pessoa passar a responsabilizar o outro pelos danos provocados, vendo-o como alguém menos poderoso, porventura "doente" ou perturbado e que, como tal, fez. Estes dois caminhos de transformação ilustram algo que gradualmente tem vindo a tornar-se claro para a investigação em Psicoterapia. Os acontecimentos de vida traumáticos, apesar de terem um potencial tremendo de sofrimento humano duradouro, podem ser alterados e, com isso, apaziguados. Algumas referências bibliográficas: - Angus, L., Greenberg, L. (2011) Working with Narrative in Emotion-Focused Therapy: Changing Stories, Healing Lives. Washington: American Psychological Association - Malcolm, W., Warwar, S., Greenberg, L. (2005) Facilitating Forgiveness in Individual Therapy as an Approach to Resolving Interpersonal Injuries. In E. L. Worthington (Ed.) Handbook of Forgiveness (pp. 379 - 391). New York: Routledge. - Paivio, S., Pascual-Leone, A. (2010) Emotion-Focused Therapy for Complex Trauma: An Integrative Approach. Washington: American Psychological Association
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AuthorFilipe Bernardo Archives
June 2021
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